EROTISMO NA LITERATURA

*em manutenção
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Italo Calvino, “Sobre o erotismo na literatura”, 1961



Italo Calvino

Sobre o erotismo na literatura
Os nossos contemporâneos ainda pensam muito em sexo. Aquele que pensa muito não é livre. O “sentido do pecado” está em via de extinção, mas estamos mais do que nunca distantes de uma felicidade natural. A concepção centrada no sexo do moralismo repressivo religioso está sendo substituída, na mentalidade e no costume de massa, por outra concepção, em que a plenitude sexual é considerada em termos míticos e abstratos e, por isso, se torna outra forma de alienação.
Nesta situação a escrita do sexo se torna sempre mais difícil. Se numa sociedade dominada por tabus, preconceitos e rigores, o sexo foi para a literatura um grande símbolo de conhecimento, de contato com a realidade, de verificação existencial, no nosso século, talvez, apenas um único autor conseguiu afirmar, em termos modernos, esta ordem de valores: Hemingway. Posição única (e não última razão pela qual a presença de Hemingway foi tão positiva e fortificante): em geral, no nosso século os escritores que se interessam por sexo ou são apologistas de alguma mística erótica (e como valor literário são uns trombones, e o seu armamento verbal e de imagens envelhece em poucos anos, enfraquecendo-se e provocando o riso), ou representam a vida sexual com um comportamento meio distante e meio desgostoso; eles substituem o erotismo visto como paraíso por um erotismo visto como inferno (e como valores poéticos podem alcançar enormes resultados, sérios e, historicamente, muito significativos, mas a sua imagem da realidade não é, no fundo, diferente daquela de um praticante da quaresma ou de um puritano). Hoje, poderíamos dizer que consegue escrever sobre sexo com força poética apenas quem o olha entortando o nariz com desdenho; enquanto que para quem considera as relações amorosas com simpatia e gratidão cabe unicamente evitar escrever sobre sexo. (…)
No momento, tudo aquilo que podemos dizer é que no século XX o erotismo não é um motivo poético. O nosso século é o século de Kafka, escritor casto.
Os escritores que acreditam na existência de batalhas que precisam ser combatidas, em que o sexo continua tendo um significado, estão equivocados. Na América ainda acreditam na possibilidade de criar um conflito contra a sociedade puritana, mudando um epígono como Henry Miller por um profeta de novos tempos. Na França, estão convencidos de que misturar sexo com filosofia é um grande progresso, mesclando-o também com a teologia, porém continua sendo a mesma contaminação de coisas distintas, as quais não podem dar bons frutos. (Pierre Klossowski por um gosto fútil da filosofia conseguiu trair a sua autêntica e séria vocação de pornógrafo). Na Itália, um conluio de magistrados, prelados e outras autoridades, se utiliza, para chamar a atenção de toda a nação, das “cenas acusadas”, procurando dar novamente atualidade ao problema da representação artística do sexo, que não interessa mais a ninguém. (…)
Um tédio mortal aumenta a sombra sobre a palavra “erotismo” e sobre todos os seus reflexos na literatura, no cinema e nos jornais. (Nada de mais fúnebre do que a sexologia moralizadora das revistas semanais não-conformistas). (…)
Hoje, já que as imagens e as palavras do “erotismo” estão desgastadas e inúteis, resta à expressão poética a infinita liberdade dos transportados. Uma das mais fortes e inequívocas cargas de eros manifestadas no nosso século nos vem dos poemas e das narrativas de Dylan Thomas, as quais são, como nunca, puras de imagens e de palavras. Porque Thomas traz da experiência do eros o sentido de deflagração do universo contido em cada folha, em cada lembrança, em cada alegria e trepidação. Jorge Luis Borges manifestou a mudança amorosa em contos, onde uma imagem feminina se liga a um símbolo de totalidade cósmica (por exemplo, El Zahir e El Aleph), alcançando por via intelectual uma dimensão emotiva que pelo único caminho da mimese decadentista das sensações seria impossível imaginar.
Ou há o caminho contrário: usar as imagens do erotismo, agora desprovidas de toda carga emotiva, como se fossem ideogramas de uma outra série de significados. Exemplo: La noia [O tédio] de Moravia. Neste romance alguém me advertiu que se fala muito de relações sexuais; eu, mesmo tendo lido o livro com grande paixão, não tinha me dado conta disso; toda a minha atenção estava tomada pelo verdadeiro tema da narrativa: a procura de uma relação entre o sujeito e a objetividade do universo.
Estas são as razões pelas quais aos jovens escritores, que enviam manuscritos de romances pedindo uma opinião, respondo – nove entre dez casos – com uma carta-modelo: “Distinto senhor, examinei o seu manuscrito e pude constatar que ele tem passagens de tema erótico. Enviando-lhe novamente o manuscrito por carta registrada, permito-me lhe dar o conselho de eliminar tais passagens do seu texto, assim como toda representação, menção ou alusão em matéria, evitando nas suas obras futuras toda referência a estes argumentos…”.
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Marcel Duchamp, “Étant donnés”, 1946-1966
 
Italo Calvino, “Sull’erotismo in letteratura”, in: Nuovi Argomenti (n. 51-52), revista organizada por Alberto Moravia e Alberto Carocci. Roma, 1961, p. 21-24, tradução Davi Pessoa.
As perguntas também foram respondidas por Nicola Abbagnano, Norberto Bobbio, Cesare Cases, Franco Fortini, Arturo Carlo Jemolo, Elsa Morante, Alberto Moravia, Enzo Paci, Guido Piovene, Renzo Rosso e Sergio Solmi. Os seus textos não necessariamente seguem a lógica das perguntas, como é o caso do ensaio de Calvino e o de Elsa Morante, mas, muito mais, são construídos a partir da reflexão de cada um desses intelectuais sobre o tema proposto pela revista.
As perguntas são as seguintes:
1) O erotismo na literatura europeia tem muitos precedentes. Há o erotismo dos clássicos, das obras gregas e romanas, há o erotismo medieval, há o erotismo do renascimento e há, por fim, o erotismo burguês que nasceu no século XVIII e que ainda está vivo. Diríamos que a linha de separação entre o erotismo clássico e o seu posterior é a noção judaico-cristã do pecado. Vocês acreditam que o erotismo contemporâneo se assemelha mais àquele clássico ou àquele de derivação cristã?

2) O mundo, nos últimos cinquenta anos, está sempre mais em processo de descristianização. Uma grande revolução foi realizada pelo nudismo. É evidente que não se pode mais voltar atrás, ou seja, ver uma mulher vestida dos pés à cabeça, sendo o nu considerado um pecado. De modo análogo, Freud e a psicanálise revelaram zonas da psicologia que no passado estavam cobertas pela censura cristã. Vocês não acham que aquilo que hoje se chama erotismo não é, no fundo, amiúde, uma realidade nova, recuperada pela cultura e destinada um dia a se tornar inócua e normal, assim como o nu feminino?

3) Fala-se com frequência de neopaganismo a respeito de certas representações “inocentes”, ou que assim gostariam de ser, da literatura moderna. Segundo vocês, no que consiste a diferença entre esse neopaganismo e o verdadeiro paganismo, tal como era representado no mundo antigo, e como ainda sobrevive em países como a Índia e o Japão?

4) A noção de pecado está muito ligada às três religiões de conduta, ou ética, de origem semita: o judaísmo, o islamismo e o cristianismo. A concepção moderna do fato sexual tem, ao contrário, origens científicas, naturalistas. As três religiões citadas tendem a excluir o sexo da cultura, e a ciência moderna tende a incluí-lo. Vocês acreditam que possa existir um acordo entre essas duas concepções ou acreditam que a segunda está destinada a tomar o lugar da primeira?

5) Todas as vezes que se dá o escândalo de um livro ou de um filme em que se encontram representações eróticas, os defensores expõem a argumentação de Benedetto Croce acerca do resultado estético, já os acusadores procuram demonstrar que esse resultado não existe. Este ponto de vista é até mesmo acolhido pela lei com um artigo do nosso código. Vocês não acham que erramos nos dois casos? E que a representação erótica não deveria ser julgada diferentemente de qualquer outra representação, ou seja, segundo um critério de necessidade e de verdade?

6) Na América a relação Kinsey revelou um desnível profundo entre as várias leis dos Estados Unidos e a realidade da vida americana. Vocês acreditam que seja uma coisa boa a manifestação desse desnível entre a arte e a realidade da vida? Em outros termos, a arte tem que representar o mundo como é, ou, ao contrário, como deveria ser?

7) A religião cristã atribui, hoje, assim como há vinte séculos, a máxima importância aos tabus sexuais. Mas aquilo que era útil e, talvez, necessário há vinte séculos, num mundo espontâneo, pagão e carnal, talvez seja supérfluo e inútil, aliás, danoso, nos nossos dias, sendo esse mundo moderno rígido e intelectual. Em outras palavras, ele já está em processo de descristianização, de fato, porque é cristão. E os tabus que serviram para torná-lo cristão, quando ainda era pagão, revelam-se inúteis atualmente, já que as paixões pagãs deixaram de existir. Desse modo, vocês não acreditam que o erotismo moderno na literatura, tal como na vida, seja um sinal de liberdade e de bom-senso mais do que de sujeição e de desregramento?

8) O erotismo na literatura contemporânea a partir de Lawrence procura mostrar o sexo como uma coisa saudável, necessária, natural e religiosa. Para a literatura moderna o sexo é uma realidade objetiva e suprimível: um meio de conhecimento. Vocês acreditam que seja necessário continuar seguindo esse percurso até o fim, ou acreditam que seja necessário voltar aos tabus cristãos, ou, pior ainda, voltar aos tabus vitorianos do decoro e da boa educação pequeno-burguesa?

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